quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Ponte para a eternidade...


Anciãos: os pilares da África
Por: LEÓN NGOY KALUMBA, Sacerdote jesuíta congolês


Os anciãos em África desde sempre desempenharam um papel decisivo. Além de fundamento da família e da etnia, eram os condutores da vida, o elo de união entre o passado e o futuro, os repositórios da sabedoria popular e os educadores da juventude.

Mais de metade da população africana é constituída por jovens com menos de 30 anos. A juventude, como um grande capital humano, apresenta-se como a força de transformação em vistas de um futuro prometedor. Estes jovens africanos têm grandes ideais e vontade de transformar a situação que o continente africano atravessa, infelizmente pouco lisonjeira. A juventude ajuda a reinventar a sociedade africana; possui, além disso, uma grande criatividade na arte da sobrevivência. Mas estes jovens ainda contam com os anciãos? Que lugar ocuparão as pessoas mais velhas no contexto da sociedade africana?
Tradicionalmente, representam um elo fundamental. O amor à vida é uma característica de todas as culturas africanas. A sociedade organiza-se e estrutura-se em volta da vida; a «vida» é a chave que permite entrar na alma, na filosofia e na espiritualidade do negro africano. A vida é sagrada; é preciso respeitá-la, protegê-la e fazer com que ela cresça. A morte, em África, é concebida sobretudo como a continuação da vida no outro mundo. Assim se compreende o culto aos antepassados e a sua veneração. Para os negros africanos, «os mortos não são mortos»; continuam a viver em comunhão com os vivos. Os negros africanos conservam uma estreita relação com os antepassados, para não interromperem a corrente da vida. Por isso, não se chama antepassado a todos os mortos, mas àqueles que servem de referência e modelo para os vivos. Daí a importância e o respeito atribuídos aos anciãos, por serem os mais próximos dos antepassados.

A memória do povo

Os anciãos são também a memória do povo, aqueles que preservam a história e uma infinidade de acontecimentos e palavras recebidos do passado. «Velho que morre, biblioteca que arde», dizia Hempaté Ba. Um provérbio bambara, na África ocidental, afirma que «o velho vê sentado aquilo que o jovem de pé não descortina». Desta forma se associa a idade (os anos vividos) à sabedoria. Em diversos idiomas da cultura banta, «ancião» e «sábio» são dois conceitos coincidentes; por exemplo, mzee, em swahili, significa ancião, sábio, respeitável. Os anciãos são aqueles que «viram o Sol antes dos mais novos», aqueles que sabem ensinar.
As fábulas, narradas à noite, junto da fogueira, por quem tem mais experiência da vida e autoridade moral - os anciãos -, são uma autêntica lição.  Também uma criança ou um jovem podem contar aos outros uma fábula, mas não passa de uma brincadeira ou de uma iniciação. Como quando uma menina imita, com uma boneca, os gestos que vê fazer à mãe em relação a um irmão mais pequeno. Estes provérbios são amiúde sólidos argumentos nas discussões ou em litígios importantes entre adultos.
O lugar onde nasce e se desenvolve a vida, a família é uma instituição de referência e de identidade da pessoa. A família - nunca nuclear, mas alargada - engloba todos os seus membros (irmãos, primos, tios, avós). Tem de existir entre eles uma grande solidariedade. Não nos admiremos, portanto, se uma criança for viver para casa dos tios, pois encontra-se sempre «em família». A solidariedade é partilhar com os outros aquilo que uma pessoa tem; por conseguinte, é concebida como a arte de saber estar e viver com os seus «irmãos». Nas línguas bantas, «ter» traduz-se por «estar com». Assim, dizer «tenho um irmão» equivale a dizer «estou com um irmão» e «tenho uma casa» equivale a «estou numa casa».
Várias famílias com um antepassado comum formam o clã. Os clãs formam a tribo ou a etnia. Há elementos que unem os membros da mesma etnia (tribo): o antepassado comum, o chefe, a cultura (a tradição), a língua, o território (a terra). Uma etnia possui uma determinada história, um sistema político e económico e uma organização social. Stefano Kaoze, o primeiro sacerdote congolês, define a etnia como uma nação ou povo. Pertencer a uma etnia é um dom, uma riqueza; implica a identidade social e cultural, a segurança do indivíduo. Na etnia, o africano encontra as suas raízes e os valores de referência.
Os anciãos são os pilares da família e da etnia, não só por conhecerem a sua história e a sua cultura como também por servirem de referência aos costumes e aos segredos da vida. Acompanham os membros da família e ocupam um lugar central na etnia. Encontram-se sempre presentes nos momentos-chave da vida de cada um dos membros da família e presidem à celebração desses momentos: nascimento, iniciação, matrimónio e morte. Conhecem as plantas medicinais e procuram manter a harmonia no seio da família. Rezam ao deus dos antepassados, que sempre os protegeu. A sua alegria é viverem entre os seus, no seio da sua família, clã ou etnia, e morrer satisfeitos depois de verem os filhos dos seus netos.

De mestres a “bruxos”

Os anciãos continuam ainda a ser, em África, uma referência para a maioria dos mais jovens. Mas a civilização moderna faz com que, no continente africano, convivam diversas culturas: as tradicionais e as modernas. O respeito pelos anciãos está a mudar, sobretudo nas cidades.
* Já existem, em diversos locais, lares para anciãos, devido à influência do Ocidente e ao entusiasmo dos missionários. Constituem um refúgio para os que viram os seus cônjuges dizimados pela pandemia da sida ou por qualquer outra doença. Por outro lado, afastam os velhos do seio da sua família.
* Os contributos da modernidade, com as suas novas tecnologias, subvertem a ordem do mundo tradicional africano: vieram as escolas e as universidades, a cultura ocidental é apresentada como superior à africana, a televisão substituiu os convívios do anoitecer à roda da fogueira e o ancião procura o seu lugar nesta nova ordem.
* Os jovens perdem respeito aos anciãos e julgam os seus ensinamentos antiquados; há até quem os retenha como bruxos, capazes de tirar a vida aos mais novos.
O futuro da África passa por saber ligar o seu passado ao presente, integrar a modernidade nas suas culturas sem perda de valores. É preciso não esquecer a «memória» dos antepassados. «A árvore cresce quando afunda no solo as suas raízes», diz um provérbio africano. Com a sua longa história, os povos africanos implementaram sistemas que lhes permitiram organizar a sua vida social e política; a sua religião responde à necessidade de uma alma profundamente crente. É uma memória que fica no «gene» do negro africano. É preciso valorizá-la no diálogo com os contributos do mundo moderno, para conseguir uma vida adequada à África e ao africano.
Presentemente, muitos médicos e investigadores recorrem à sabedoria dos anciãos para descobrirem e catalogarem as plantas medicinais que as florestas africanas escondem. O cristianismo deixa-se enriquecer com os valores africanos: por exemplo, utilizam-se os provérbios e os contos para explicar a palavra de Deus. Prescindir do ancião seria como tentar apagar o passado da África. O seu rosto terá de acompanhar a juventude africana, pois «a mão do ancião pode tremer, mas a sua voz costuma acertar no alvo».

Missionários Combonianos - Revista Além-Mar

Em África o idoso ou ancião ocupa um lugar de destaque na Sociedade e na Comunidade. Os anos de vida fazem do ancião um depósito de saberes que,  frequentemente são transmitidos oralmente às gerações mais novas,  garantindo a continuidade da sua cultura.

Em tempos de crise é  a estes anciãos que a comunidade recorre em busca de uma solução. Quando as culturas não produzem como era suposto,  quando os animais não providenciam alimento suficiente,  quando a doença alastra,  é os seus idosos que as comunidades tradicionais em África procuram a resposta. Como  um misto de conselheiro económico,  agrícola e médico,  o ancião é muitas vezes visto como o garante da resolução dos problemas. Por via disso,  a sua posição é respeitada por todos,  contribuindo para que o ancião possa viver com conforto e segurança. Os mais velhos,  pela sua importância para a segurança comum,  são protegidos e acarinhados.

Ao conservarem as memórias do seu povo,  são os idosos as verdadeiras referências dos mais jovens. Ao contrário da sociedade moderna,  o idoso nas comunidades tradicionais em África detém um poder sobre os mais novos que é entendido e aceite por estes como algo necessário,  ou mesmo essencial,  à sua formação como homem ou mulher de pleno direito.

Conscientes da precariedade da vida,  os elementos da comunidade vêem os idosos  como uma espécie de ligação com os seus antepassados. São como que a ponte entre o mundo dos vivos e  o mundo dos mortos. Também estes últimos  são encarados nestas sociedades mais tradicionais como fazendo ainda parte da comunidade por via dos conhecimentos que também  eles transmitiram àqueles que,  agora idosos,  eram então jovens. Uma verdadeira ponte para a eternidade assente no papel do idoso.

E se um dia todas as máquinas se avariarem,  todos os computadores se apagarem, todos os velhos morrerem para a vida,  depositados como mercadoria fora de prazo,  morreremos  todos à fome ?...
Esta tradicionalidade começa,  no entanto,  a perder-se. Devido às influências da civilização dita ocidental,  é comum ver hoje,  nos países em desenvolvimento,  velhos e velhas depositados em lares, esperando apenas a  hora de morrerem. Com eles morrerá também toda uma cultura,  todo o saber que jamais será recuperado,  com prejuízo principalmente para as gerações futuras,  que perdem as suas referências e identidade.

Face a isto,  pergunto-me se a civilização moderna caminha efectivamente para a evolução ou se, com tanto desperdício de conhecimentos  e saber,  corremos o risco de um dia nada sabermos...

Tá?!...

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